– E qual é o carro dos Persona? – perguntou um dos colegas de meu filho na van que o levava à faculdade. O assunto era a marca e o modelo de cada família.
– Quantum 87 – respondeu meu filho, sem pestanejar.
– 87? – exclamaram todos gargalhando exagerados. Ninguém acreditou.
A verdade é que na época eu tinha mesmo uma Quantum decenal e nem pensava em trocar. Não que nutrisse por ela um sentimento como o do Heródoto Barbeiro pela Kombi que dirige. A mesma que ele conta que não deixaram estacionar na frente do Hotel Transamérica quando foi dar uma palestra, ou que o levou a ser confundido com o rapaz das entregas, ao chegar a uma feira do livro.
No meu caso não havia qualquer ligação sentimental, mas puro desinteresse por automóveis de qualquer espécie. O carro anda? As portas abrem e fecham? O farol acende? Então serve para mim. Se a Quantum estava velha, feia e suja, azar dos motoristas dos outros carros. De dentro do meu, eu só enxergava carros novos, bonitos e limpos.
A insistência dos filhos levou-me a trocar por um e por outro até estacionar num Santana 97. Esse eu conduzi até recentemente, quando as reclamações recomeçaram. Dos filhos e do carro. Precisava de um mais novo para as viagens constantes para ministrar palestras e treinamentos em cidades próximas ou sem vôos regulares.
Negociador veterano, coloquei a máscara de quem só está olhando e entrei numa concessionária local, dirigida por dois rapazes que foram meus alunos de marketing. O escorpião em meu bolso beliscou, para lembrar que estava ali. Não seria fácil alguém conseguir vender para mim, um inveterado e compulsivo não-comprador. Sofro da "Síndrome de Pânico de Shopping". Antes seria preciso sedar o escorpião.
Se pensa que um profissional de marketing é imune à sedução de uma venda bem feita, errou. Treino pessoas para vender, mas viro geléia quando encontro alguém que vende bem. Compro, com o sentimento de um professor que quer premiar um aluno com uma boa nota. E que nota!
– Por que eu deixaria de comprar um Astra, um Corolla ou um Honda para comprar um Focus? – testei a vendedora, citando os que já tinha pesquisado na Internet. Esperei pelo esconjuro de praxe contra a concorrência. Não veio. Aquela era uma venda ética, positiva e profissional.
– Todos são excelentes. Qualquer um deles vai deixá-lo satisfeito, mas... você vai ficar ainda mais satisfeito dirigindo um Focus.
– Nem bem o "s" terminara e eu já estava embarcado num test drive. Os heróis de minha resistência estavam sendo vencidos, um a um. Fugi para casa, para tratar das picadas do escorpião no bolso.
Mas ela ligou para saber o que achei. Gostei do modelo hatch, mais barato para o escorpião. Porém apostei que no porta-malas não caberia a cadeira de rodas de meu filho. Ufa! Achara uma desculpa para não comprar. Ela estacionou um modelo hatch na porta de casa, só para experimentar a cadeira de rodas. Ganhei a aposta, mas ela não desistiu. Novo telefonema. Se eu só visse as condições de pagamento do sedan...!
Voltei à loja. Negociei, negociei e negociei, até conseguir o que queria. Ou pelo menos ela fez eu pensar assim. A atenção de meus alunos serviu de sedativo para o escorpião. "Vai uma água, professor? Um café?" Pesou ainda na decisão um aperto de mão. Do funcionário veterano, que conheceu meu pai, perguntou da família e trocou dois minutos de prosa saudosa.
– Aceita o Santana de entrada? – indaguei, já nos últimos espasmos.
– Claro. – respondeu ela, pegando um formulário.
– Financia o resto? – eu suava.
– Até perder de vista. – estendeu-me a caneta.
Ontem meu celular tocou. Estacionei o Focus – que agora é meu e do banco – e atendi. Da concessionária perguntavam se tudo estava bem, comigo e com o carro. Lembrei-me do que ouvi lá, de meu aluno, quando elogiei o atendimento em sua loja: "Aprendemos com você, professor".
Foi aí que passei a olhar de um jeito diferente para o carro. De um jeito que inclui gente – as pessoas que me levaram até ele. Quase como o Heródoto olha para sua Kombi, mas acho que nem tanto. Numa Kombi cabe muito mais gente.
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