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Sem palavras

A luz vermelha invadiu o palco improvisado e engoliu uma fatia de escuridão. Sob seu foco surgiu um velho televisor, ou o que restava dele. Comprada numa loja de restos eletrônicos, a velha caixa de madeira já não tinha cinescópio ou válvulas. Era oca e vazia, como a minha cabeça de então.

Por trás de uma tela de plástico rígido acostumada com o Repórter Esso a platéia viu aparecer meu rosto pintado. O resto do corpo estava semi-oculto sob o palco. Eu me contorcia, como quem está desesperado para sair da telinha por onde todos querem entrar.

Palco e platéia pertenciam à faculdade onde cursava meu primeiro ano de arquitetura. O show insano era a forma improvisada que encontramos para entregar um trabalho em grupo sobre a imprensa aprisionada pela repressão de então. Ao invés das maçantes folhas datilografadas decidimos entregar uma peça de não sei o quê.

Principiantes teatrais, pintamos uns aos outros com tinta guache escolar, sem imaginar o incômodo que aquilo traria ao secar. As caretas horríveis que fazíamos, torturados pela coceira e pelo ardume da tinta seca sob o calor holofotes, acrescentavam um toque dramático ao visual.

Torcíamos jornais para derramar um sangue de guache vermelho embebido em esponjas entre suas páginas. Fazíamos gestos atrás de um biombo de papel vegetal iluminado, criando um efeito de teatro de sombras, porém sem ensaio e sem sentido. Estripulias, danças, saltos e gritos loucos, tudo valia para manter a platéia na expectativa de que algo estava para acontecer.

Mas nada aconteceu, não tínhamos coisa alguma para fazer acontecer. Quando a luz se acendeu, vimos uma platéia equilibrando pontos de exclamação na testa. Como eles, não fazíamos idéia do significado daquilo tudo. Esperamos pelo pior.

A professora parecia embasbacada. Confessou que não tinha palavras para se expressar e gaguejou um "excelente". Mesmo assim, ainda quis a interpretação de tudo aquilo por escrito para documentar. Aí fomos nós que ficamos surpresos. Antes que a vaca fosse pintada de guache para o brejo, alguém teve a idéia de pedir se podíamos entregar no dia seguinte o não sei o quê devidamente datilografado e encadernado. Colou.

Então a professora que estava sem palavras falou. E como falou! Falou do significado que aquilo tudo tinha, explicou cada movimento nosso, cada loucura, cada grito, cada gota de suor. Até as máscaras de guache ganharam um significado que ignorávamos. Enquanto ela falava, alguém do grupo anotava.

No dia seguinte, o texto datilografado recebia um dez. Por uma incrível coincidência, nossa interpretação da peça coincidia exatamente com o que a professora pensava. Foi aí que aprendi o significado da máxima de David Ogilvy: "Comunicação não é o que você diz; é o que os outros entendem".



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