Meu neurologista ligou para dar duas notícias. Boas ou más? Depende. A primeira foi que eu não tenho nada na cabeça. A segunda, que leu algo sobre mim em algum lugar. Ouvir que não tenho nada na cabeça ou saber que meu nome saiu em algum lugar não é suficiente. Preciso conhecer o contexto.
Se eu fosse laranja de alguém e me dissessem que meu nome apareceu no jornal, não ficaria contente, mas apreensivo. Se fosse outro que me dissesse que não tenho nada na cabeça eu ficaria ofendido. Mas como veio do neurologista, de quem eu aguardava o resultado de um exame, que também diz que viu uma citação minha em um livro de marketing médico, já posso soltar rojão.
Conhecer o contexto é vital na comunicação, pois nunca sabemos o que uma partícula de nossa mensagem pode causar quando atinge um contexto desconhecido. Hoje, por exemplo, recebi um e-mail de um que não é meu neurologista, mas quis dar uma segunda opinião:
"Fico abismado com a cultura acima do normal e o conhecimento que o senhor tem. Mas fico mais triste em saber que o senhor não tem foco em sua vida. Aparentemente, salvo melhor juízo, o senhor é um oportunista, 'chavequista' e aproveitador de mentes. Sua administração cerebral não é das mais honestas."
Meu dicionário não tem "chavequista", mas tem "xaveco", que é "comportamento imoral, criminoso e cínico". Será que algo que eu escrevi gerou aquela reação por causa do contexto ou do mérito da questão? É comum alguém que só viu o rabo do elefante achar que o animal seja um pincel.
Alguém mal informado pode querer agradar outro que pegou febre amarela com o elogio: "bonita cor". Alguns, com filhos pequenos no contexto moral de sua sala, podem querer a censura de programas carregados de sexo, dinheiro e poder. Outros podem nem ligar que seus pequenos assistam à sessão da tarde da TV Senado em lugar do desenho animado.
O contexto também muda com o passar do tempo. Em 1903 dois obscuros mecânicos de bicicletas de sobrenome Wright fizeram um vôo secreto e o jornal de sua cidade natal, o Dayton Daily News, noticiou assim:
"RAPAZES DE DAYTON EMULAM O GRANDE SANTOS-DUMONT"
Como vocabulário também cria contexto, algum leitor menos versado pode achar que os irmãos Wright chamaram Santos-Dumont de ‘mula’. Nada disso. O jornal disse que eles 'imitaram' "o grande Santos-Dumont".
Grande Santos-Dumont? Num jornal americano? Sim, o jornal achou que o vôo secreto tinha sido em um dirigível, e na época todo mundo sabia que o milionário brasileiro que vivia em Paris e não perdia uma festa no Castelo de Caras era o Ayrton Senna dos dirigíveis.
Se perguntar hoje a um repórter do mesmo jornal é capaz de receber um "Santos-Quem?" como resposta. É que agora até a versão americana da enciclopédia Encarta traz os irmãos Wright como inventores do avião e Santos-Dumont como... ué, devia estar por aqui...
Não sei o que diz a versão brasileira, mas sei que a Microsoft criou diferentes versões para agradar a gregos, troianos e italianos. Nesta última o inventor do telefone é Antonio Meucci, e não o Graham Bell da versão americana. Enquanto na americana Thomas Edison inventa a lâmpada só, na versão britânica ele ganha um coadjuvante, o britânico Joseph Swan.
A Microsoft sabe que se não levar em conta o contexto do cliente ele descarta sua Encarta. O mesmo acontece na comunicação. Se o que eu disser não encontrar um par no contexto do universo de meu interlocutor, cuspi palavras ao vento. Aconteceu comigo esta semana.
Quando vi, de primeira mão, meu sexto livro numa vitrine, não resisti. Comprei um. Na hora de pagar, meu ego me garantiu que era impossível um escritor como eu não fazer parte do contexto de um funcionário de livraria. Por isso, para brincar, perguntei ao rapaz se o livro era bom, achando que ele me reconheceria pelo nome no cartão.
Não sei por que ainda escuto meu ego. A resposta do rapaz me fez ver que eu ainda não fazia parte de seu contexto.
-- Não conheço o autor. Mas o livro deve ser bom, porque o prefácio é do Max Gehringer. Os livros dele eu li e são bons.
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