O táxi que me levava ao aeroporto era dirigido pela tartaruga em pessoa. Não que o motorista fosse lento. Não era. Apelidei-o de 'tartaruga' só por ser enrugado e vivido. E também por lembrar a tartaruga da fábula de Esopo, "A lebre e a tartaruga", recontada por La Fontaine, onde não é a autoconfiança que vence, mas a perseverança que vem do reconhecimento das próprias limitações. O motorista era assim. Velho e calejado de erros que não se preocupava em esconder.
De vez em quando faz bem encontrar alguém consciente de suas próprias falhas, de seus limites, e que não acredita tanto assim em si mesmo. Não, você não vai ouvir de mim a frase "acredite em si mesmo". Acreditar mesmo, só em Deus, que não pode falhar.
Todas as vezes que me empolguei e acreditei em mim mesmo descobri depois que eu estava mentindo para mim com o objetivo de me manipular. Acha estranho? Quando você se vir frente a frente consigo mesmo vai entender.
Depois de uma certa idade a gente começa a aprender o que é o ser humano — e mais particularmente o 'eu humano'. Começa a entender que covardia, miopia, orgulho e mentira são acessórios que vêm de fábrica, prontos para usar. Qualquer pessoa tem potencial para falhar.
Depois de uma certa idade a gente começa a aprender o que é o ser humano — e mais particularmente o 'eu humano'. Começa a entender que covardia, miopia, orgulho e mentira são acessórios que vêm de fábrica, prontos para usar. Qualquer pessoa tem potencial para falhar.
O problema é que tentamos nos convencer de que não falhamos e — já que em todo crime sobra um corpo — passamos a nos explicar e a procurar alguém para culpar, na tentativa de tirarmos o corpo fora.
Quando vira hábito passamos a vida procurando alguém pior para podermos nos comparar. Então o que bebe explica que não toma drogas, o viciado avisa que não rouba e o ladrão diz que não mata. Vai me dizer que você nunca se explicou assim?
Um pouco antes de entrar no táxi eu tinha trocado alguns minutos de prosa com alguém com o mesmo número de anos daquele motorista, mas que enxergava um mundo onde todos erravam, menos ele. Não que o motorista pensasse o contrário ou achasse todo mundo bom, menos ele. Na verdade ele não nutria ilusões acerca de pessoa alguma, ele incluso.
Ex-policial, contou do tempo em que era mandado participar, à paisana, de manifestações. Seu papel era distribuir bombinhas para assustar os cavalos da polícia e instigar manifestantes pacíficos a ficarem violentos. O objetivo? Fazer o pau comer para justificar o cassetete amplo, geral e irrestrito. Evidentemente ele saía antes.
Em outras ocasiões infiltrava-se em reuniões de manifestantes para descobrir quem estava patrocinando, só para descobrir o próprio governo por trás da manifestação daquele bando de manipulados que acreditava fazer oposição.
E foi depois de confessar que cumpria ordens das mais imorais, que contou ter transportado, no dia anterior, um passageiro costumeiro naquele trajeto até o aeroporto. Quando o passageiro -- um advogado do tipo lebre, apressado e autoconfiante -- reclamou da corrupção, o calejado motorista retrucou que corruptos todos somos.
Do alto de seus 26 anos de idade, o pequeno doutor se defendeu afirmando ser incorruptível, de reputação ilibada, lisura profissional imaculada, lhaneza no trato, e mais uma dúzia de adjetivos que mais se atribui quem menos tem.
Antes que o motorista pudesse explicar por que considerava todos -- inclusive a si próprio -- corruptíveis, tinham chegado ao destino. Depois de receber pela corrida, o motorista entregou ao advogado um cartão com uma sugestão:
— Ao invés de chamar a Central de Rádio-Táxi, da próxima vez ligue direto para mim que vai economizar três reais, que é o que a central está levando nesta corrida. A gente faz o negócio por fora e a Central nem precisa saber.
— Ótimo, vou fazer isso -- respondeu o advogado interessado -- É sempre bom economizar algum.
— Bem, agora que já o convenci a chutar a Central para escanteio, como eu estava dizendo, que todos somos corruptos não resta dúvida. O que varia é o preço. No seu caso, três reais. Tá muito barato, doutor.
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Adorei esse artigo, pois né que hoje acordei meio chateada com o meu cardápio profissional, me senti sem um programa de governo....nossa pensei nos leitores, o quanto eles nos instigam a continuar, mas dei uma palavrinha inexplicável com Deus, reclamei, botei pra fora,agradecendo tudo...mas vc pode ter zero ou cinco estrelas, mas se não tiver um sonho é melhor nem começar as negociações...pois é ando negociando uma Coluna, mas não quero entrar pelo cano dos editores...obrigada Mário por me dar esse intervalo entre a tartaruga e a lebre...e em todos os momentos teus artigos serão sempre bem-vindos!
ResponderExcluirEstou aqui, entre os seus leitores, sem baixar os ombros, nem a guarda.
Cristina Guedes
escritora e jornalista
http://revistafroditequemquiser.ning.com/profiles/blogs/desde-que-seja-voce-mesmo