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Eu terceirizo, tu terceirizas, ele trabalha

A fossa transbordou. Quem já passou por isso sabe o que significa. A velha fossa da velha casa onde morei quando ainda era novo chegou ao limite. Precisava urgente encontrar alguém para cavar uma nova. Acho que as pessoas costumavam chamar esse profissional de fosseiro, mas nem precisei chamar. Um vizinho chamou para mim por causa do mau cheiro que estava ficando insuportável.

Não senti firmeza no sujeito alto e magro que picava fumo com o canivete na palma da mão sem calos, apoiado no cabo de uma pá. Enquanto ele lambia a palha para enrolar seu cigarro, fui me preparar para ir trabalhar. Antes de sair vi que o homem estava no mesmo lugar, apoiado na mesma pá, com o mesmo cigarrinho nos lábios. Mas era só ele quem estava parado. O serviço continuava, pois agora era outro que cavava.

O homem sorriu para mim um sorriso de poucos dentes e explicou, economizando ao máximo suas palavras:

— Terceirizei.

Terceirizar é o que a raça humana vem fazendo desde o princípio. Na verdade, trabalhamos com um só objetivo na vida: parar de trabalhar. Isso mesmo. O objetivo do trabalho sempre foi o ócio, o sonho de uma aposentadoria. Quem aposta na loteria está buscando um atalho para ter uma vida inteira de final de semana, apenas com sábados e domingos, mas sem a expectativa da chegada da segunda. Ao inventarmos a terceirização, criamos a procrastinação produtiva, o sonho de toda barriga ansiosa por empurrar o serviço para alguém.

Mesmo sabendo e querendo isso, muitos têm grande dificuldade em delegar trabalho e responsabilidade. São pessoas que se sobrecarregam, que querem ser tudo para todos e fazer tarefas que qualquer substituto seria capaz de cumprir. Podem ter aprendido a conjugar todos os verbos, menos o mais importante: Eu terceirizo, tu terceirizas, ele trabalha.

Voltemos agora à nossa pesquisa histórica. Primeiro, terceirizamos o trabalho dos braços para as clavas, alavancas e cabos de ferramentas, que eram mais fortes e eficazes. Depois terceirizamos o trabalho das pernas inventando a roda. Cada terceirização, evidentemente, não parava por aí, mas também evoluía. Alguém já disse que o mais inteligente não foi quem inventou a primeira roda, mas quem fez as outras três. A evolução natural dessa terceirização foi a tração, e deixamos que os animais cuidassem da carga pesada. A sofisticação veio com o aproveitamento do vento nas velas, da água nas rodas dos moinhos e do vapor nas caldeiras das máquinas para girar o mundo. A coisa evoluiu de tal maneira que a vida se tornou impraticável sem a energia de terceiros.

Enquanto essa terceirização do trabalho pesado acontecia, estávamos terceirizando também nossos sentidos. Contratamos os ouvidos dos cães para melhorar nossa própria audição na vigilância da caverna. Seus olhos e focinhos também foram contratados para enxergar e farejar melhor do que qualquer um de nós seria capaz de fazer. Antes que me esqueça, seus dentes também vieram no contrato de defesa pessoal e segurança patrimonial. Já podíamos dormir sossegados, mas não queríamos perder a hora de acordar. Por isso criamos galos para nos acordarem na hora certa e, muito antes da invenção do e-mail, já tínhamos pombos para voarem por aí com nossas mensagens. O Outlook do passado podia ser comido quando parava de funcionar.

Continuamos com nossa saga de terceirização na produção de alimentos e vestuário, contratando a vaca para transformar capim em proteína, o boi para fornecer matéria prima para pentes, pincéis e calçados e a abelha para fazer das flores mel. Do maior ao menor, nem as bactérias foram poupadas nessa terceirização plena, geral e irrestrita. Elas foram contratadas para fazerem crescer o pão, combater a infecção e transformar a uva e a cevada em alegria. Já podíamos brindar nas horas que não precisássemos mais trabalhar em nossa saga na busca do ócio e lazer perenes.

A grande sacada da terceirização estava na possibilidade de sobrar tempo para tarefas mais nobres como pensar, pintar, escrever ou cantar. Sem a terceirização o ser humano jamais teria tido tempo suficiente para criar outras coisas para poder terceirizar, como a câmera para fazer o trabalho do pintor, a impressora para tomar o lugar do copista e o disco para viajar no lugar do cantor.

Mas não bastava terceirizar. Era preciso aperfeiçoar, como fizemos com o cachorro. De uma única matriz ancestral criamos um cão para cada profissão. Pastor de ovelhas, guia de cegos, guarda noturno e até barman, aquele São Bernardo que atende alpinistas "on the rocks". Algumas raças, como cães de madame, não servem para coisa alguma, mas aprendem rápido a terceirizar: deixam que tudo seja feito pelo dono.

Quando atingimos o estágio atual de desenvolvimento, vimos empresas terceirizando seus estoques para os fornecedores, exigindo entregas just-in-time e contratando serviços de terceiros que, por sua vez, contratavam os serviços de quartos, quintos e sextos. Supermercados, bancos, companhias telefônicas e restaurantes terceirizaram os serviços de atendimento para os próprios clientes, que agora são atendidos por si mesmos e não podem reclamar.

Hoje você é o balconista, que pega o produto na prateleira e embala; é o caixa do banco, que digita e imprime recibos; a telefonista, que faz seus próprios interurbanos, e o garçom do restaurante self-service, que leva e traz a bandeja. Enquanto isso, você terceiriza seus recados para a secretária eletrônica, o regime para alimentos diet e as abdominais para o cinto vibratório que é anunciado na TV.

Numa economia assim, quem não souber terceirizar vai ter de trabalhar e, enquanto trabalha, não terá tempo para criar e inovar. A terceirização é o grande segredo da solução de problemas. Ela ganhou impulso com o advento dos serviços de consultoria, que permitiram terceirizar o raciocínio. Hoje pagamos para outros pensarem por nós. Existe lógica na decisão, já que ninguém consegue ser maior que a própria sombra e, se posso lançar mão da capacidade alheia, por que não? Muitas das empresas mais lucrativas do mundo acabaram terceirizando tudo e ficando só com a ideia, a marca e os royalties que isso gera. Dos pés à cabeça, quanto mais alta estiver a área de seu corpo que você mantém em atividade em sua profissão, maior será o seu ganho. Isso, evidentemente, não se aplica a jogadores de futebol.

Portanto, se quiser se dar bem na loucura em que se transformou o trabalho — e ter mais tempo para o ócio criativo e realmente produtivo — sugiro que aprenda a terceirizar seus problemas e necessidades. Na sociedade em que vivemos, e numa amplitude global, a terceirização virou uma instituição que vai do topo à base da pirâmide produtiva, espalhando-se horizontalmente em todas as direções. Mas, como acontece com as pirâmides de dinheiro fácil, nem todos acabam descansados e felizes. Alguém precisa ficar com o mico e trabalhar na fossa.

Voltei do trabalho na dúvida se o fosseiro e seu subcontratado tinham dado conta do recado. Encontrei ambos do lado de fora do buraco, cada qual apoiado na sua pá e tragando seu cigarrinho. Da borda do buraco, agora profundo, surgia uma pá de vez em quando arremessando terra para fora. Tinha alguém lá dentro trabalhando. Nem precisei perguntar. Por entre os poucos dentes amarelos de nicotina, os dois baforaram em uníssono:

— Terceirizamos!

Mario Persona é palestrante de comunicação, marketing e desenvolvimento profissional. Seus serviços, livros, textos e entrevistas podem ser encontrados em www.mariopersona.com.br Esta crônica faz parte de seu livro "Dia de Mudança".

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4 comentários:

  1. Anônimo24/1/14

    Genial Mario, parabéns! Estou ainda aprendendo a terceirizar, aos poucos, a mão de obra é muito cara, portanto EU PEGO E FAÇO!

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  2. Final do 9º paragrafo ''no lugar cantor.'' o certo seria no lugar do cantor? Texto muito bom :D Abraços cwbcontoswagnerbarroso.blogspot.com.br

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  3. Paulo16/2/14

    Bela crónica

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  4. Prezado Mario Personna.

    Parabéns pela crônica,
    Carlos Lupus

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