Quando pequenos, meus filhos foram criados em outro planeta chamado "Trinta Anos Atrás". Orbitando em torno de um sol semelhante ao que aquece o planeta Terra, as condições de temperatura e pressão lá eram bem diferentes. O clima era mais ameno e seus habitantes sofriam menos pressão, vivendo em uma atmosfera rarefeita de poluentes morais, degradantes e mortais.
O planeta onde meus filhos foram criados era bem primitivo. Lá não existia celular, Internet, touch screen, e-book ou rede social. Porém já era mais avançado que o planeta onde meus pais me criaram, o planeta "Sessenta Anos Atrás". Lá o leite era de vaca em garrafas de vidro e o plástico era novidade. Meus brinquedos eram de madeira ou lata, eram movidos a pilhas de calorias e o controle remoto era conhecido como "barbante".
Quando eu era pequeno a distância cultural entre mim e meus pais era insignificante. As músicas eram praticamente as mesmas, e roupas e calçados infantis eram simplesmente miniaturas da moda usada pelos adultos, que tínhamos orgulho de imitar. Já tínhamos TV no planeta "Sessenta Anos Atrás", mas não em cores, e a programação começava às cinco da tarde. Antes disso eu brincava com outras crianças no mundo real, pois não existia o virtual. Às nove da noite todos os dois canais de TV tocavam o jingle dos cobertores Parahyba: "Já é hora de dormir, não espere mamãe mandar..." e a criançada desaparecia da sala antes que a cinta começasse a cantar.
As coisas não mudaram muito do planeta em que fui criado para o planeta de meus filhos. Nos dois planetas e-mails, conhecidos como "cartas", não eram enviadas com um clique do dedo, mas com uma lambida da língua num papelzinho chamado "selo". Câmeras fotográficas precisavam de filme, uma tira de acetato enrolada num cartucho que era depois levado a um laboratório para produzir fotos de papel. Por serem caras, ninguém gastava filme com gatos ou esmalte de unha, só com filhos e parentes para guardar num álbum. O meu tinha capa de madeira envernizada. As fotos só podiam ser compartilhadas pessoalmente ou via correio, e nudes só eram encontrados em revistas para adultos e produzidas por adultos, nunca por crianças em frente ao espelho.
Tanto no planeta em que fui criado, como no de meus filhos, meninos ganhavam sapatinhos azuis ao nascer, e meninas rosa. Não havia "Ideologia de Gênero" e as crianças não corriam o risco de trombar com um adulto do sexo oposto num banheiro unissex. As escolas só podiam ser ocupadas por estudantes em dias de aula e quando tocava o sinal, e quem mandava na sala de aula era o professor. No intervalo as crianças brincavam de aviãozinho, mas só correndo de braços esticados e desarmadas. Nos dois planetas, no meu e no de meus filhos, as crianças saíam da escola sabendo ler e escrever em um idioma que chamávamos de "Língua Portuguesa".
Para viajar usava-se um GPS feito de papel e conhecido como "mapa". Não era preciso recarregar, só dobrar. Em casa tocávamos música num player chamado "vitrola", e os arquivos mp3 eram baixados de lojas reais e já gravados em CDs pretos de vinil. Havia CDs de diferentes tamanhos: "LP", "Compacto Simples" ou "Compacto Duplo".
No planeta de meus filhos os discos riscavam, mas não se quebravam com facilidade, uma evolução se comparados aos do planeta em que nasci, feitos de um material frágil como vidro. Um dia inesquecível foi quando saí pela casa carregando a coleção de música italiana de meu pai numa pilha de discos 78 rpm. Quando ele me viu, gritou para eu largar. Naquele planeta obedecíamos aos pais, e eu larguei.
No planeta de meus filhos já era possível ouvir música no carro e na rua usando fitas K7. Como o player era grande demais, quase ninguém era visto levando um a tiracolo, e a perda da audição das crianças só começava quando chegavam à terceira idade.
Os auditórios – que na Terra são chamados de "igrejas neo-pentecostais" – lá eram chamados de "cinema" ou "teatro", e você só pagava para entrar. Uma vez dentro, ninguém pedia dinheiro. As crianças eram levadas àqueles lugares só quando havia uma programação adequada, pois existia uma filtragem chamada "Censura" e a idade era verificada na porta. Ao contrário do que ocorre hoje na Terra, era impossível uma criança assistir pornô no telefone. Estes eram usados só para telefonar.
As crianças do planeta onde cresci eram esqueléticas, leves e ágeis. Eu tinha uma Tia Bete, mas nunca ouvi de algum menino que tivesse diabetes. Refrigerante só em festa de aniversário de primo rico. Na TV não passava UFC – Ultimate Fighting Championship – porque tínhamos TPS – Te Pego na Saída – ao vivo todos os dias na saída da escola. Quem perdia não ficava recalcado e nem vitimizado. Só chorava e pronto, porque ainda não tinha sido inventado o bullying.
Os "games" eram jogados em praças, ruas e quintais usando pernas e braços, e não apenas dedos. No planeta em que meus filhos foram criados já existiam consoles de videogame, mas para jogar com um amiguinho era preciso ele vir à sua casa ou você ir à casa dele. Ninguém jogava ou namorava sem se encontrar pessoalmente, e não existiam emoticons, emojis ou smileys para demonstrar sentimentos. Todos usavam expressões faciais.
Hoje quando visito a casa de minha filha aqui no planeta Terra, chego a achar que ela exagera em seus receios, limites e regras para proteger meus netos da atmosfera poluída que sai dos canos de descarga da Internet, TV a cabo e redes sociais. Aí ela precisa me lembrar de que não sou deste planeta, e não sou mesmo. Dou meus palpites mas confesso que eu nem saberia com criar uma criança hoje no planeta Terra. Afinal, fui criado no planeta "Sessenta Anos Atrás" e criei meus filhos no mundo de "Trinta Anos Atrás". Quando pequenos, tenros e vulneráveis, nem eu e nem eles ficamos expostos a uma tamanha carga de radiação moral, degradante e mortal como a que envenena o planeta Terra atual.
Mario Persona é palestrante de comunicação, marketing e desenvolvimento profissional. Seus serviços, livros, textos e entrevistas podem ser encontrados em www.mariopersona.com.br
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Ah como eu gostaria de poder voltar a esse planeta!
ResponderExcluirFiz parte desse planeta , bons tempos...
ResponderExcluirPerfeito, Mario!
ResponderExcluirJamais li algo tão lindo assim! edificante e consolável
ResponderExcluirEu faço parte da geração que viveu num planeta próximo desse aí, "o chamado planeta 50 anos atrás".
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