O voo é tranquilo e logo pousaremos em Chapecó. Tento imaginar se lá fora eu congelaria antes de inchar. É que poucos milímetros de alumínio me separaram de uma temperatura de 50 graus negativos, e a falta de pressão a onze mil metros de altura me faria inchar como um balão. Olho para minha barriga e chego a duvidar que seja possível ficar maior. Só sobrevivo naquele ambiente hostil, voando a 800 quilômetros por hora, por causa da tecnologia.
Quando meus pais se casaram, viajaram de lua-de-mel para o Rio em um Douglas DC3 com 23 passageiros. O Boeing no qual viajo leva seis vezes mais gente, pesa cinco vezes mais e voa três vezes mais rápido. Uma maravilha tecnológica.
Lá na cabine o piloto tem um joystick no lugar do manche. Espero que ele se lembre de que está em um avião real e ninguém ali está querendo passar de fase. De qualquer modo posso descansar, pois a tecnologia nos deu também o piloto automático, de precisão absoluta. Aliás, em um voo que fiz de Roma a Londres, o percurso inteiro foi feito pelo piloto automático. Como eu sei? O piloto italiano ficou conversando com os passageiros pelo interfone a viagem inteira. Você acha que um italiano falando daquele jeito teria mãos para pilotar?
O avião evoluiu tanto que eu poderia até trabalhar durante a viagem. Isto se conseguisse abrir meu notebook no espaço que a companhia deixou entre as poltronas. Às vezes penso que a redução das refeições de bordo tenha algo a ver com esse espaço. Ficou tão apertado, que na mesinha só cabe um biscoito cream-cracker. Em pé.
Observo tudo. O botão para chamar a comissária, o furinho da saída do ar condicionado, a luz de leitura, o fecho da mesinha, e até decorei a propaganda no paninho do encosto para a cabeça da poltrona da frente. Que arrependimento! Eu devia ter comprado aquela revista.
Chegamos a Chapecó e as comissárias passam a dar os avisos de apertar cintos, desligar aparelhos eletrônicos e coisa e tal. Olho pela janelinha e só vejo nuvens. Que coisa incrível a tecnologia! O piloto sabe que Chapecó está logo ali e vai acertar a pista com uma precisão milimétrica.
Invadimos a nuvem entrando em um mundo branco e cego de neblina, enquanto acompanho a sequência de sons que já decorei depois de tantos voos. Ruído de flaps, o trem de pouso descendo, a turbina acelerando e reduzindo, como se calculasse a distância exata para alcançar a pista. Agora só falta sentir o toque das rodas no cimento.
Mas o piloto arremete no último instante. Por uma brecha na neblina vejo que onde deveria existir uma pista só há copas de árvores. Quase pousamos antes da pista. O piloto avisa que precisou arremeter por causa da pouca visibilidade. Tento imaginar a cena na cabine: uma comissária abanando o piloto e o copiloto enquanto outra traz um copo de água com açúcar para cada um.
Recomeçam os avisos de apertar cintos e lá vamos nós para uma segunda tentativa. Pela brecha de nuvens consigo ver o suficiente para perceber que aquilo é o fim da pista, não o começo. Nova arremetida. Se eu não soubesse que o aeroporto de Chapecó se encontra firmemente ancorado no topo de uma montanha, poderia jurar que a pista está se movimentando, tentando nos evitar.
Ofegante, o piloto avisa que sobrevoaremos Chapecó até a visibilidade melhorar, caso contrário pousaremos em Florianópolis. Ele diz que temos combustível suficiente para quarenta minutos rodando ali e para a viagem até Florianópolis. Como sei que no caminho não há postos com frentistas em altitude de cruzeiro, pergunto ao rapaz ao lado:
– E se o aeroporto de Florianópolis estiver fechado?
Ele não responde, está lendo um jornal. A princípio penso que o rapaz seja mal educado, mas logo percebo que o jornal está de cabeça para baixo. Mesmo assim ele tem os olhos grudados nele e as unhas cravadas no papel.
Quarenta minutos mais tarde o tempo melhora e lá vem a voz do comandante outra vez:
– Senhores passageiros, estamos prontos para pousar. Dentro de alguns minutos estaremos todos no aeroporto de Chapecó.
Depois de um ou dois segundos de silêncio, ele completou:
– Assim espero.
Mario Persona é palestrante de comunicação, marketing e desenvolvimento profissional. Seus serviços, livros, textos e entrevistas podem ser encontrados em www.mariopersona.com.br
© Mario Persona - Quer publicar Mario Persona CAFE em seu blog? Não se esqueça de colocar um link apontando para www.mariopersona.com.br .
Pesquisar este blog
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Postagens populares
-
Se você faltou à aula de inglês e dormiu nos últimos anos, eu traduzo. "What's up" significa "Pode isso, Arnaldo?!"...
-
Creio que uns 90% de minha atividade em palestras, workshops, treinamentos e coaching seja em eventos in company. Quero dizer, na maioria da...
-
Nosso planeta é habitado por três tipos de pessoas: canhotos, destros e ambidestros. A classificação é feita segundo o uso das mãos ou dos p...
-
Não existe "Dia Internacional da Menina e do Machão"? Então acabei de instituir. Vem antes do "Dia Internacional da Mulher&qu...
-
Bill Gates deu um conselho: doe seu dinheiro. Achei o conselho ótimo, apesar de não me enquadrar nem entre os que devem doar, nem entre os ...
-
Você sabe a diferença entre comunicação síncrona e assíncrona? Deveria saber. Comunicação síncrona exige que ambos interlocutores estejam di...
-
Passava da meia-noite quando cruzamos o paralelo 14, o mesmo de Machu-Pichu, próximo ao Monte da Baleia na mística Chapada dos Veadeiros, o...
-
Durante alguns anos, e a convite de uma instituição de ensino, lecionei Administração Mercadológica em seus cursos de Administração de Empre...
-
Sou madrugador, do tipo que prepara café solúvel com água de chuveiro no quarto do hotel bem antes de o café da manhã começar a ser servido....
-
Eu bem que tentei, e até gostei de você. Rápido, seguro, firme nas curvas. Mas acho que estou um pouco velho para novas experiências. Afinal...
Senacional "desabafo"!
ResponderExcluirAté perdi o ar, em alguns momentos...
Sou claustrofóbica ��
������
Gina Dias
Ufaaaa..
ResponderExcluir