Eu era um dos quatro únicos professores formados, numa cidade onde o quinto diplomado era o Tiradentes local — um dentista —, título que lhe cabia muito bem em meio às tantas cavidades de uma descalcificada e desdentada população. Tamanha era a independência de dentes proclamada pelas bocas locais, que até algumas dentaduras postiças sorriam suas vagas. Assim era a do dono da venda, o único "1001" postiço que conheci.
Eu, a esposa e um casal de jornalistas santistas, éramos os professores estrangeiros do lugar. Jovens empreendedores e idealistas, segundo o nosso julgar, mas irresponsáveis e inconsequentes, no julgar de nossos pais. A verdade é que não medíamos esforços nem riscos, e nem ligávamos para as convenções e obrigações, como aconteceu quando organizamos aquele desfile do 7 de Setembro, um feriado que só com muita criatividade, ingenuidade e inconsequência seríamos capazes de prolongar. Como de fato prolongamos.
Empreendedorismo rima com idealismo. São coisas parecidas. Talvez você diga que o ideal do empreendedor é mais mesquinho, obter lucro a qualquer custo. Será? Se o lucro fosse a meta, muitos teriam parado no primeiro milhão. Idealista e empreendedor buscam mesmo é independência. para empreender e sonhar. A meta deles não passa de um botão que aciona a satisfação.
Independência e sorte é o ideal do empreendedor. Liberdade, ainda que tarde, o empreendimento do idealista. Mas ambos querem desembainhar a espada de seu próprio rumo, decidir como trabalhar, o que produzir e quando parar. Parecem buscar uma nova fronteira, muito além do Ipiranga do grito, e não pretendem parar ali. Para eles, alvo é como balde. Se chegar perto, chutam para mais longe.
Enquanto muitas empresas dizem estimular o funcionário empreendedor, a prática da teoria é outra, mais ao estilo de Frederick Taylor, pai do gerenciamento científico. Mas quem foi Frederick Taylor? Fico feliz que tenha perguntado, pois ele sugeria que o trabalho cerebral fosse banido do ambiente de produção e deixado para gerentes. Operários não deveriam ser pagos para pensar, mas para operar, isto é, produzir.
O grito característico desta doutrina é "Lucratividade ou morte"... para quem estiver ao alcance da lâmina. No vácuo moral dessa antiga doutrina da administração só cabem números para encher o vácuo moral da própria antiga doutrina da administração. Pessoas são reles vassalos que existem para servir cegamente a coroa.
Mas há empresas descobrindo que valorizar gente é bom negócio, e não estou falando aqui da valorização do cliente. Afinal, já estamos cansados de saber que o cliente está em primeiro lugar. Mas... cá entre nós, está? É claro que não. Os interesses dos acionistas estão em primeiro lugar. Se não acredita, pergunte ao Papai Noel e confirme com o Coelho da Páscoa. Na prática, o acionista vem primeiro, depois o cliente, por último, o funcionário. Aquele que a empresa espera que seja empreendedor no discurso, e espera que ele seja trazido por uma cegonha.
E se alguém alterar esta ordem? Tirar do trono o acionista e colocar o funcionário lá? Será que ele viraria empreendedor? Sendo valorizado, talvez trabalhe melhor. Com liberdade para criar, pode ousar sem medo de errar, e se trabalhar satisfeito, sua satisfação pode contaminar o cliente. Que, por sua vez, dará mais lucro para o acionista, que poderá rir por último, mas rir melhor.
Esqueça. Acho que estou delirando. Ninguém produz mais e melhor se for valorizado. Nem fica mais criativo se lhe for dado espaço. Uma liberdade assim levaria o funcionário a pensar fora dos limites conhecidos, um verdadeiro desastre e um ultraje para os padrões, normas e convenções estabelecidas. Ou não?
Enquanto você decide, preciso voltar à preparação do desfile de 7 de Setembro que promovíamos na escola da Chapada dos Veadeiros. Criatividade foi o que sobrou ali com a solução que encontramos para visitar nossos familiares a mais de mil quilômetros dali, sem privar a população do feriado e do desfile de 7 de Setembro. Marchamos com a fanfarra e os alunos da escola até nossa Kombi, que de malas prontas nos aguardava estrategicamente estacionada numa bifurcação. Dali o desfile seguiu para a direita e nós seguimos o coração sacolejando na Kombi abarrotada.
Por sorte aquela independência não acabou em morte para nossas carreiras, quando ouvimos da delegada de ensino do Estado de Goiás um brado mais sonoro que o do Ipiranga. De espada em punho, ela enviou um ofício avisando aqueles jovens inconsequentes que seu desejo de viajar os tinha levado longe demais. Afinal, tínhamos conseguido convencer uma cidade inteira com seus seiscentos habitantes a antecipar o 7 de Setembro para o dia quatro. Culpa do desejo de liberdade, ainda que cedo.
Nossa Kombi,que serviu de casa, caminhão, e até de grito de liberdade para ousar. |
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Muito bom!
ResponderExcluirMario dando show com seus textos!
ResponderExcluirPelo menos havia uma causa...rsrs
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